segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A casa de Asterión

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                                                       E a rainha deu à luz um filho que se chamou
                                                                                                    Astérion.
                                                                                                                 APOLODORO: Biblioteca, III, I.

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, talvez de loucura. Tais
acusações (que castigarei no devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de
minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito)1 estão abertas
dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui
pompas femininas, nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Por
isso mesmo, encontrará uma casa como não há outra na face da terra. (Mentem os que
declaram existir uma parecida no Egito.) Até meus detratores admitem que não há um só
móvel na casa. Outra afirmação ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei
que não há uma porta fechada, acrescentarei que não existe uma –, fechadura? Mesmo
porque, num entardecer, pisei a rua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me
infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mão aberta. Já se tinha
posto o sol, mas o desvalido pranto de um menino e as rudes preces da grei disseram que
me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se prosternava; alguns se encarapitavam no
estilóbato do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Alguém, creio, ocultou-se no
mar. Não em vão que foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo,
ainda que minha modéstia o queira.
O fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros
homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escrita. As
enfadonhas e triviais minúcias não encontram espaço em meu espírito, que está capacitado
para o grande; jamais guardei a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência
generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os
dias são longos.
Claro que não me faltam distrações. Como o carneiro que vai investir, corro pelas
galerias de pedra até cair no chão, atordoado. Oculto-me à sombra de uma cisterna ou à
volta de um corredor e divirto-me com que me procurem. Há terraços de onde me deixo
cair, até me ensangüentar. A qualquer hora posso brincar que estou dormindo, com os
olhos fechados e a respiração forte. (Às vezes durmo realmente, às vezes já é outra a cor
do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a de outro
Astérion. Finjo que ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes
reverências, digo-lhe: "Agora voltamos à encruzilhada anterior" ou "Agora
desembocamos em outro pátio" ou "Bem dizia eu que te agradaria o pequeno canal" ou
"Agora verás uma cisterna que se encheu de areia" ou " lá verás como o porão se
bifurca". As vezes me engano e os dois nos rimos, amavelmente.
Não só criei esses jogos; também meditei sobre a casa. Todas as partes da casa
existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um
bebedouro, um pesebre; são catorze [são infinitos] os pesebres, bebedouros, pátios,
cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Todavia, à força de
andar por pátios com uma cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a
rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me
revelou que também são catorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas
vezes, catorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma única vez: em
cima, o intrincado sol; embaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a
enorme casa, mas já não me lembro.
Cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo o mal.
Ouço seus passos ou sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente para
procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após o outro, caem, sem que eu
ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria
das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles profetizou, na hora da morte, que um
dia chegaria meu redentor. Desde esse momento a solidão não me magoa, porque sei que
vive meu redentor e que por fim se levantará do pó. Se meu ouvido alcançassem todos os
rumores do mundo, eu perceberia seus passos. oxalá me leve para um lugar com menos
galerias e menos portas. Como será meu redentor? – me pergunto. Será um touro ou um
homem? Será talvez um touro com cara de homem? Ou será como eu?
O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não restava qualquer vestígio de
sangue.
– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu. – O minotauro mal se defendeu.
                                                                            A Marte Mosquera Eastman.

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